Conversando com um amigo hoje, ele me lembrou deste conto que eu escrevi em 2010, um mundo pré Edward Snowden. Era só um conto, mas eu explorava o potencial nocivo do vigilantismo digital. O tempo provou que eu tinha razão. Nada como um dia depois do outro:
A Sala de Controle (Publicado em 28/5/2010 no saudoso trezentos.blog.br):
Foi um sonho estranho, e até agora não sei bem o que fazer com o que vi nele.
Deveria ter sido só mais uma viagem, igual a tantas outras que eu já fiz para participar de eventos internacionais. A diferença nessa era um coquetel, que seria oferecido a alguns palestrantes do evento na sede daquela empresa famosa, que entre outras coisas possui um sistema operacional para smartphones.
Lembro-me que no sonho eu pensava: Por que fui convidado para esse coquetel ? Existem mais brasileiros por aqui, mas por que fui o único convidado ?
Tudo ia bem, até que no meio do coquetel, depois de um discurso inflamado de um dos executivos da empresa, resolveram nos levar para conhecer as “inesquecíveis instalações” (quanta prepotência, pensei eu). Devíamos estar em um grupo reduzido, de dez ou quinze convidados e lá fomos nós, conhecer as “inesquecíveis instalações” da tal empresa. Tudo muito bonito, muito moderno e com um ar geek que daria inveja a qualquer nerd que conheço… apesar de tanta beleza, era mais do mesmo: escritórios com computadores de dar inveja, mesas repletas de bonecos e gadgets geeks para todos os gostos e paredes recheadas de figuras divertidas. Tudo estava relativamente normal, até que chegamos no final de um corredor, e nos deparamos com duas pesadas portas de metal, que parecia um elevador, mas dada a largura das portas, eu duvidava que fosse isso mesmo.
Me lembro de ter comentado com um dos visitantes que estava ao meu lado, que ali devia ser a entrada do data center deles, e qual não foi nossa surpresa quando a pessoa que nos guiava anunciou: Vocês foram escolhidos a dedo, pois temos o prazer de mostrar a vocês algo que temos e que vocês nunca esquecerão… Juro que pensei que ia ver um super mega data center…
As portas se abriram e pude confirmar minha suspeita de que aquilo era mesmo um elevador, e era o maior que já vi na vida, pois todos nós embarcamos de uma só vez. Me surpreendi ao ver o mecanismo de segurança usado para abrir a porta do elevador: um scanner da palma da mão, um scanner de retina, reconhecimento de voz e digitação de uma senha em um teclado todo maluco… alta segurança mesmo, pensei eu.
O elevador gigantesco não possuía botão algum e tão logo entramos todos, a porta se fechou quase que num passe de mágica. Com a porta fechada, senti que estávamos descendo e foi aí que percebi uma discreta câmera panorâmica no teto do elevador… deve ter alguém controlando isso de algum lugar.
Não sei se era pela ansiedade ou não, mas o elevador não chegava nunca. Não faço ideia da distância que descemos, mas sei que demorou bastante. Quando chegamos ao nosso destino, as portas se abriram e pudemos todos entrar em uma ante-sala, que possuía uma única (e gigante) porta, com o mesmo controle de acesso do elevador. Me lembro que pensei: “Será que é outro elevador ?”.
Nosso guia passou novamente por todo o seu ritual de identificação até que finalmente ouvimos um profundo e grave “cleck” e a porta se abriu. Pudemos ver um extenso corredor em nossa frente… Sigam-nos por favor, foi o que disse nosso guia, e assim lá fomos nós, caminhando pelo extenso e iluminado corredor. Finalmente no final dele existia uma porta de vidro muito grosso e jateado, que se abriu automaticamente quando chegamos perto dele. Vi novamente uma outra câmera de segurança no teto… seja o que for que vamos ver, é seguro mesmo !
Finalmente chegamos a uma sala, ou melhor dizendo a alguma coisa parecida com um mini auditório, com uma tela gigantesca composta por diversos monitores LCD, de dar inveja a muito cinema que conheço. Existiam ainda umas quatro fileiras de consoles e computadores, com umas 20 pessoas trabalhando neles… aquela sala de monitoramento me lembrou a sala de monitoramento das missões espaciais da NASA, que um dia vi num documentário… pensei que estávamos na sala de monitoramento das conexões de redes deles, e pelo porte da empresa, uma sala como aquelas era o mínimo que eu esperava.
Achei esquisito demais as imagens projetadas nos monitores: alguns mapas 3D do globo terrestre com milhares de pontos marcados neles (e a maioria desses pontos se movimentava de forma muito lenta), enquanto outras telas mostravam alguns vídeos… não sei por que aquela cena me deu um calafrio, pois não conseguia entender o que eles estavam monitorando. Foi aí que nosso guia começou a falar.
Ele disse que fomos escolhidos para conhecer aquela sala, pois aquela empresa sabia que poderia confiar em nosso sigilo, uma vez que nosso silêncio já havia sido comprovado no passado… os calafrios aumentaram.
Esta é nossa sala de controle, dizia nosso guia. Através dela, temos acesso a grande parte da população humana, e conseguimos monitorar suas atividades. Os smartphones que utilizam nosso sistema operacional nos enviam em tempo real a localização dos usuários e com isso, podemos saber aonde está cada pessoa. Podemos ainda combinar estas informações e saber quando um determinado grupo de pessoas está reunido, e ao dizer isso, apontou para um grupo de pontinhos em uma das telas. Foi dado um zoom no grupo apontado por nosso guia, e pude ver que aquelas pessoas estavam em algum edifício que se parecida com um restaurante.
Apenas para demonstrar nossa tecnologia, nos disse nosso guia, vamos ouvir o que estas pessoas estão conversando. Com apenas alguns cliques, uma nova tela se abriu e passamos a receber todo o som ambiente da sala onde as pessoas se encontravam… me lembro de ter duvidado de que aquilo estava mesmo acontecendo, quando nosso guia nos disse que aquele grupo estava ali reunido para debater um determinado tema, e que sabiam disso pois tinham acesso aos e-mails trocados entre eles para agendar o encontro. Aí tudo fez sentido: o som que estávamos ouvindo não vinha de nenhuma escuta ambiente, mas dos microfones dos smarpthones daquelas pessoas, controlados remotamente pela empresa… o calafrio aumentou ainda mais.
Que absurdo ! Protestou alguém… Quem garante que estas pessoas são elas mesmas ! Disse um outro… Nosso guia, na sua frieza de sempre apenas respondeu com um sorriso: E vocês acham que as telas touchscreen foram á toa ? Alguém aí acredita que o custo delas é assim tão baixo a ponto de equipar todos os smartphones com nosso sistema ?
Ao ver que todos nós estávamos perplexos com tudo aquilo, nosso guia ainda brincou: Vou ativar algumas câmeras para que vocês possa ver o que podemos fazer, e foi assim que imagens em vídeo passaram a ser apresentadas nos monitores LCD. A maioria delas estava muito (ou totalmente) escura, e nosso guia avisou que nestes casos os telefones deviam estar no bolso ou sob a mesa, e esta suspeita foi confirmada ao conseguir uma imagem que mostrava algumas lâmpadas. Ôba, disse o guia, estamos com sorte, pois um dos celulares tinha duas câmeras, sendo uma delas frontal.
Me lembro que eu sentia um misto de admiração e raiva, pois a tecnologia ali exibida era simplesmente fantástica, mas a utilização de tal tecnologia para espionar pessoas era simplesmente inaceitável. Um dos meus colegas protestou, dizendo que a empresa não tinha o direito de fazer aquilo, e um outro funcionário da empresa que estava calado até então entrou em uma discussão das mais insanas que já presenciei.
Dizia ele que a empresa tinha direito sim de utilizar aquelas informações e de fazer tudo aquilo que estava fazendo, e que tudo isso visava a garantia da segurança internacional… novamente a boa e velha desculpa para a bisbilhotagem deslavada. Um outro colega protestou de forma mais veemente, e foi aí que começaram a nos contar algumas histórias interessantes sobre atentados que haviam sido impedidos por conta desta tecnologia, criminosos que haviam sido localizados e detidos, quadrilhas desmanteladas e uma série de outros casos onde a tecnologia aparentemente havia sido utilizada para coisas boas… foi aí que eu resolvi lhes perguntar se a tecnologia não havia também sido utilizada para coisas não tão boas assim, como obtenção de informação privilegiada de governos e segredos industriais… a gargalhada por parte deles foi assustadora, e veio em seguida a resposta: “É evidente que sim…”.
Demonstrando muita irritação, um outro colegas então alertou: “Isso não vai ficar assim, vou denunciar esta prática ao mundo todo…”. Mais gargalhadas ecoaram pela sala, e um sonoro “você vai ficar de bico bem fechado, pois também podemos te monitorar e se você não se comportar de forma adequada, vai ser fácil te encontrar e fechar sua boca de uma vez por todas !”.
Perguntei então a eles o motivo pelo qual estavam nos mostrando aquilo tudo, pois era um despropósito gigantesco… Desta vez a resposta veio acompanhada de um sorriso irônico: ”É bem fácil de entender: vocês foram monitorados por nós durante os últimos meses, e descobrimos que sempre fizeram tudo aquilo que gostaríamos que fizessem, mesmo quando não estavam na nossa presença. Monitoramos cada ligação feita por vocês, sabemos com quem vocês se relacionam, quais informações trocam com estas pessoas e rastreamos e monitoramos a vida de vocês 24hs por dia, para nos certificar de que são realmente confiáveis. Estamos apresentando isso a vocês, pois nos últimos meses vocês tem enfrentado alguns problemas e tem tido dificuldade para nos ajudar a resolver nossos problemas de forma mais rápida e eficiente. Não temos dúvida que apoiados por uma ferramenta como esta, vocês poderão resolver com extrema rapidez os problemas que têm nos incomodado”…
Me lembro de ter ficado muito irritado com aquela proposta absurda, mas em seguida veio algo ainda pior: “É evidente que vocês podem se negar a continuar cooperando conosco, mas depois de ter conhecido nossa sala de controle, lhes restam poucas opções – ou permanecem do nosso lado, usando agora esta poderosa ferramenta, ou tomaremos as providências para que não fiquem de lado algum… na verdade vão ficar de um lado sim: o lado de dentro de uma cova rasa”… O desespero bateu bem forte e foi aí que eu acordei…
Me lembro de ter saído da cama e arrancado a bateria dos meus smartphones, e desde então, não vejo mais estes equipamentos com os mesmos olhos…